Na busca pela verdadeira história de quem deixa o Brasil para se aventurar rumo ao sonho americano, um jornalista da nossa equipe foi aos Estados Unidos para viver e relatar as histórias e o dia-a-dia de quem trocou seu país de origem por uma ilusão.
Porém, chegando lá a história foi bem diferente. O primeiro contratempo surgiu quando, ao tentar obter a carteira de motorista americana, essencial para o referido emprego, o departamento de transportes da Flórida negou o documento alegando o curto período de permanência que constava em meu visto. Fui instruído então, a tentar obter ao menos uma licença especial para conduzir carros comerciais. Mais uma vez fui barrado pela nova política anti-imigração em exercício nos Estados Unidos, que proíbe imigrantes sem carteira de habilitação local a retirarem a tal licença especial. Com isso caíram por terra todas as promessas e propostas de empregos pelas quais fui persuadido quando ainda estava no Brasil.
Mudança de PlanosDepois de alguns telefonemas, fiquei sabendo que em uma cidade próxima a Orlando, Daytona Beach, havia um hotel (foto) que estava em obras, e quase a metade dos trabalhadores eram brasileiros. Consegui falar com o empreiteiro, também brasileiro, que me empregou nesse mesmo hotel como ajudante de pedreiro, encarregado de colocar piso, por uma jornada de quase 12 horas por dia, 5 dias por semana e pagamento de $350,00 dólares semanais.
Foi quando consegui realmente o contato com os imigrantes. Éramos 10 pedreiros, todos brasileiros. Fiquei impressionado com a quantidade e com a freqüência com que via brasileiros trabalhando em obras e nos mais diversos locais de trabalho, na grande maioria das vezes trabalhos braçais. Ao indagar ao empreiteiro sobre a situação que os outros trabalhadores estavam em relação a legalidade no país a resposta veio irônica: “Aqui só quem veio de avião fui eu e você, o resto tudo veio andando!”
Fiquei atônito, queria logo poder conversar com aqueles brasileiros, saber como eram suas vidas, por que decidiram sair do Brasil, como chegaram aos Estados Unidos, o que sentem, e o que almejam para o futuro. E foi nesse mesmo dia, diga-se de passagem o meu primeiro e extremamente cansativo dia de trabalho nas obras, que consegui o primeiro diálogo com um dos pedreiros.
O acordo
Depois do expediente, por volta das 19:30, fomos todos levados para um pequeno hotel para pernoitar e continuar os trabalhos no dia seguinte, fomos divididos em duplas para ocupar os quartos, depois que nos instalamos comecei a puxar conversa com um mineiro, moreno, alto mas muito magro, o qual chamarei de João. Ilegalmente nos Estados Unidos, João (22) começou a conversar e falar sobre sua vida no interior de Minas, uma cidadezinha próxima a Governador Valadares. Com apenas alguns poucos anos de escola João se viu sem nenhuma perspectiva de emprego e futuro. Foi quando ficou sabendo por conhecidos que estavam levando gente para trabalhar no exterior, a proposta era de emprego fácil, nada muito trabalhoso, e com pagamentos altíssimos em Dólar. Porém, João não contava com nenhum dinheiro, era de família muito humilde e não poderia pagar sequer a primeira parte do pagamento exigido pelos “coiotes” (membros de quadrilhas brasileiras e mexicanas que levam brasileiros ilegalmente para os Estados Unidos) que seria por volta de R$2.500,00 dos R$10.000,00Reais cobrados pela travessia. Propuseram a João um novo acordo, ele iria sem pagar nada, porém quando chegasse aos EUA teria de pagar um valor de $300,00 Dólares por mês. Ficando assim acertado João deixou sua casa com algumas poucas roupas na mochila e partiu em direção a São Paulo, local onde os “coiotes” reúnem gente de todas as partes do Brasil e os colocam em pequenos hotéis, até que se formem grupos numerosos o suficiente para a partirem com destino ao México.
A travessia
Ao sair do país João, como todos os outros do grupo, recebeu uma quantia de 2 mil Dólares dos “coiotes” que avisaram que o dinheiro não deveria ser gasto e sim usado para pagar as propinas e subornos cobrados pelas autoridades mexicanas durante o período que ficariam no país aguardando a travessia. A primeira parte desse “pagamento” já foi feita assim que chegaram ao aeroporto da Cidade do México, após pagarem, o grupo foi liberado e todos pegaram um mesmo ônibus que seguiu para uma pequena cidade na fronteira com o Texas. João relata que a cada cem quilômetros eram parados por guardas da imigração mexicana que cobravam nova quantia em dinheiro para que pudessem prosseguir a viajem.
Depois de 3 dias andando pelo México e sem mais nenhum dinheiro, o grupo chegou na cidade que serviria como base para a travessia. Quase 30 pessoas foram espremidas em um pequeno quarto com pouca bebida e comida, e durante vários dias foram submetidos a uma espécie de prova de resistência. Eram acordados no meio da madrugada com gritos e pontapés, os “coiotes” anunciavam que aquele seria o momento da travessia, todos saiam e corriam pelo deserto até o amanhecer do dia, quando então, eram trancados em cavernas enquanto os “coiotes” do lado de fora bebiam, fumavam maconha e violentavam as mulheres do grupo que estavam desacompanhadas. João relata: “Isso aconteceu durante uns 10 dias, não agüentávamos mais, estávamos no limite, tava todo mundo desesperado, a gente tava muito longe de casa, na mão de criminosos, não tinha a quem recorrer”. João me surpreendeu ao falar da travessia:"Atravessar mesmo foi o mais fácil, difícil foi agüentar toda a humilhação, tanto dos mexicanos quanto dos americanos, atravessar foi simples, atravessamos 3 rios onde a água batia no joelho, depois o coiote falou que a gente já tava na América e mandou a gente andar em uma direção até encontrar o posto da imigração, aí era só se entregar”.
A declaração de João faz sentido, até o ano de 2005 os imigrantes que fossem pegos em terras americanas seriam presos pela imigração e depois de um período de 3 dias eram soltos mas convocados a comparecer ao tribunal e assim serem deportados, uma grande brecha na lei, pois eram raros os casos de quem voltava ao tribunal. Hoje a lei foi alterada e quem for pego pela imigração fica preso por 60 dias e em seguida é deportado. João continua: “Quando a imigração nos pegou foi humilhante. Eles xingavam a gente e mandavam todo mundo deitar no chão, quando eu olhei melhor o chão onde eu estava, vi cartuchos de bala descarregados, pensei que fosse morrer, pensei que eles fossem matar todo mundo.” Sem entender uma palavra em inglês João fala do período que ficou preso: “ Foram 3 dias de muita humilhação, a gente não tinha como tomar banho, só davam pão velho, e ficamos todos em uma sala fechada com um buraco no canto onde fazíamos as necessidades, e o pior era que eles colocaram o ar condicionado no máximo e tomaram todos os nossos casacos. Passei muito frio!”
Depois de 3 dias preso e 30 dias depois de deixar o Brasil o grupo foi levado até uma estação rodoviária e se espantaram com os dizeres do guarda: “ Eu vou passar aqui em mais ou menos uma hora, se algum de vocês ainda estiver aqui, eu deporto! ”. João disse que o desespero tomou conta de todos, alguns tiravam dinheiro escondidos em meias e cuecas para tentarem comprar passagens para algum lugar. João:”Eu não tinha pra onde ir, não conhecia ninguém aqui, a minha sorte foi que conheci uma menina no grupo que me chamou pra ir pra Orlando e passar os primeiros dias na casa da amiga dela”. Já na Flórida, João, arrumou um emprego para limpar máquinas de fritar durante a madrugada e ganhava 30 dólares por dia, dos quais quase a metade ele pagava o quarto onde dormia em uma pequena casa, a outra metade João gastava em bebidas e prostitutas, como ele mesmo diz: “Eu entrei nessa vida por que tinha que agüentar a saudade e o arrependimento de ter vindo, por isso comecei a gastar tudo que ganhava em bebida e mulheres.”
Hoje livre do álcool, João se arrepende de ter vindo, fala que tudo não passou de uma ilusão, e se vê como um escravo pelo fato de não poder voltar para o Brasil, uma vez que ainda não terminou de pagar sua travessia, como ele diz:
“Isso aqui não é nada do que eles me falaram lá no Brasil, aqui a gente trabalha muito e ganha só o necessário, no Brasil é assim também, mas lá a gente tem a família por perto e não é humilhado como aqui. Hoje eu quero voltar e não posso, ainda falta muito pra pagar a dívida com os coiotes, e eles querem 300,00 dólares por mês, eu só posso dar 100,00, eu já falei, mas eles não querem saber, dizem que se eu continuar só mandando 100,00 eles vão matar minha família lá em Minas”.
No segundo dia de trabalho estava com o corpo doído pelo fato do trabalho pesado, e com a cabeça ainda processando tudo o que João havia me falado. Na parada para o almoço conversei com mais dois mineiros, eles tinham histórias muito parecidas com a de João, com um agravante. O mais novo, que chamarei de José, com apenas 21 anos já estava no país pela segunda vez, quando indagado a respeito ele me esclareceu:”Vim a primeira vez como todo mundo, mas sofri demais, os coiotes me prenderam em um quarto escuro e me deixaram lá sozinho durante 7 dias só com uma garrafa de água, nada pra comer, quase morri naquele quarto, depois de alguns meses aqui eu atropelei uma mulher, a polícia veio atrás de mim pra me prender e eu fugi para o Brasil. Aí quando cheguei lá não achava emprego, não conseguia trabalhar, aí como eu já sabia o caminho, vim sozinho, não paguei coiote, andei alguns quilômetros pelo deserto sozinho com um pedaço de madeira na mão matando cobra, tinha muita cobra!”. E concluiu emocionado: “Ta certo que isso aqui é uma ilusão, não e nada do que falam lá no Brasil, aqui a gente não sabe falar inglês, então não tem jeito, vamos ser pedreiros pra sempre, ganharemos sempre esse pouco, mas é com esse pouco que eu sonho em um dia comprar minha rocinha lá em Minas.”
SaudadeO interessante era notar que todos eles possuem dois sentimentos em comum: o primeiro é o de que o sonho americano é uma grande ilusão, e o segundo é que todos querem, o mais rápido possível, voltar para o Brasil. E é essa a rotina de um imigrante ilegal, trabalhar muito, um trabalho pesado e hostil. Manter a cabeça ocupada para que os dias passem rápido, sem dor. Sonhar. Sonham em um dia poder voltar pra casa e esquecer todo o sofrimento pelo qual passaram, sonham em ter uma vida digna no país onde nasceram.